Morno a quente

Há alguns anos, ao final de palestra que não lembro onde, o que e para quem, ao encerrá-la, tive vontade de compartilhar uma reflexão que nunca contara a ninguém e que me aplicava – e aplico e me inquieto – cada vez que sinto estar entre ‘morno’ a ‘quente’ ou ‘frio’… Tem conotação religiosa, porém, basta ao leitor, crente ou não em que há algo além da vida terrena, adaptar e refletir se, ainda que possua os predicados que seu currículo, discursos e certificados indicam, não haveria algo mais a descobrir, desenvolver, oferecer, aplicar etc…

Você é uma pessoa tida por honesta, íntegra, trabalhadora, solidária, amorosa. Em família, na vizinhança, no trabalho, na escola, na associação comunitária, no condomínio, na comunidade religiosa. E você realmente é tudo isto, sua consciência sabe, sem sombra de dúvida que você é um ser humano decente, e que condiz com as impressões e comentários favoráveis dos seus parentes, amigos e conhecidos.

A tal ponto que muita gente é grata a você pelas suas boas ações desinteressadas, pela sua boa vontade, pelo seu ombro amigo, sua disponibilidade.

As homenagens, discursos e elogios você sinceramente nunca procurou ou se importou, porém, sabe, foram merecidos, baseados no que você realmente fez, sem enganos de observação ou avaliação.

Entretanto, por mais que tenha feito bem para os outros, por mais calor que tenha emanado de si para o próximo mais próximo e o não tão próximo, você sempre escolheu ser morno, sabendo que poderia ser quente; ou, foi quente, podendo ter sido mais. Por mais que tenha disponibilizado de si e dos seus pertences e recursos materiais, emocionais e espirituais, sempre guardou consigo uma reserva de calor.

Fez muito por e para muitos ao seu redor e aquele calorzinho prudentemente guardado para possível necessidade futura, sua, não era, afinal um pecado; você não fazia por mal, realmente era na mais pura das boas intenções.

E assim, você viveu uma vida bela, exemplar, digna, feliz e fazendo gente feliz por onde passou. Até que seu tempo aqui se expirou e você, claro, com todos os méritos, foi morar no Céu.

Antes de prosseguir a leitura, pare e pense nas pessoas que você ama; e pense nas que amam você. Pense nelas por um minuto ou o tempo que precisar. Faça-o com intensidade e mantenha-se sereno, por gentileza. Então, prossiga.

Algum tempo depois da sua Passagem desta (vida aqui) para a melhor (vida eterna), já na primeira das pessoas amadas que veio a expirar seu tempo terreno e finito, aconteceu que você a viu se aproximar da entrada do Céu.

Conforme ela se aproximava você não se continha, tamanha a felicidade pelo reencontro iminente. Você lá, junto de Jesus, Nossa Senhora, São Pedro, São Paulo e os outros santos (*) conhecidos e os não conhecidos – e tão santos quanto – quem sabe, algum santo com quem você convivera na sua vida terrena. Quanta alegria e êxtase por vislumbrar que logo toda a saudade daquela pessoa amada seria encerrada.

Eis que, para sua surpresa, próxima da entrada do Céu, lá fora, tão próxima, ela, que ainda não vira você, é encaminhada para outro lugar…

Você se espanta e pergunta a Jesus, Nossa Senhora ou um dos outros, já antecipando a si mesmo que a resposta será algo como: – Foi um engano, já vamos corrigir e ela virá ter conosco!

Entretanto, a resposta cai sobre você com a força dum machado forte a cortar um frágil fio de cabelo: – Ela não conseguiu fazer por merecer estar entre nós!

– Como pode ser? Ela viveu com decência, foi uma das pessoas mais corretas que conheci. Eu mesmo a ajudei, orientei, escutei e mostrei-lhe caminhos de retidão quando ela precisou!…

E a resposta vem como um machado ainda mais forte sobre um fio de cabelo ainda mais frágil:

– Sabe aquele calor que você sempre guardou para si mesmo, para alguma imaginada necessidade? Ele não lhe fez falta. Mas, ao tê-lo guardado e desperdiçado, por mais que você realmente tenha compartilhado do seu calor, alguém, mesmo aquecido, ainda ficou carente dum pouquinho dele – o calor que você sempre teve e achou melhor não compartilhar…

Foi só a primeira pessoa dentre as várias que você amou e que amaram você na finita vida terrena. E você terá todo o resto da eternidade para saber disso!…

(*) Santo não foi ou é alguém perfeito; foi ou é uma pessoa extremamente boa, abnegada, interessada em servir constantemente ao próximo, sem nada esperar em troca.

Nota: quando escolhi transformar em artigo e publicar, na tentativa de fazer uma introdução, escrevi e publiquei Morno a frio.

José Carlos de Oliveira

Publicado originalmente 1 de dezembro de 2013

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