O chato e os outros vizinhos

Naquela rua a pressão imposta pela cidade grande, mídia e tecnologia, facilita a que os vizinhos se distanciem uns dos outros: não se conhecem e não convivem como antes. Assim mesmo se observam e avaliam. Pela casa, roupas e automóvel, imaginam o poder aquisitivo. Pelo vocabulário e opiniões, deduzem o nível de cultura e erudição.

Pelas ações e reações, concluem quem é participativo, solidário, simpático, educado, tolerante, humilde, vaidoso, discreto; e quem é impertinente, intolerante, intrometido, obtuso, mentiroso…

Ali paira a civilidade e beira à unanimidade a opinião de quem é o chato mor da vizinhança; embora consenso que ele seja honesto, trabalhador, bom marido e pai. Implica com os cachorros, com o som dos automóveis, o ruído dos portões, as conversas nas calçadas e quintais, com o barulho de construções e reformas das casas próximas e tudo o mais que lhe incomode a tola pretensão de viver no meio de uma comunidade como se fosse um ermitão. Um dos seus hábitos mais deprimentes é sair à frente de casa, não dirigir palavra aos que o estejam desagradando, fulminá-los com olhar reprovador e voltar para dentro, batendo violentamente o próprio portão, achando que suas carrancas deveriam silenciar as pessoas, os cães, gatos, passarinhos e automóveis.

Pelo jeito, nunca lhe passou pela cabeça que também ele faz coisas no seu cotidiano que incomodam aos outros e exigem tolerância. Ultimamente tem se esmerado em garantir a unanimidade acerca da sua própria chatice. Passou a escrever bilhetes malcriados, mas, dizendo-se homem de Deus, avocando para a si a posse da certeza do que é certo e o que é errado, e de como os demais devem viver. Se fizerem algo diferente, que ele não note, posto que, do contrário, repetirá que é conversa de gente sem vergonha, sem nível e desocupada, como escreveu nos bilhetes.

As aparências podem enganar: também naquela rua as opiniões dos vizinhos entre si podem ser exageradas, para mais ou para menos, ou equivocadas. Todos nós temos momentos de chatice e existem uns bonachões que até são divertidos na sua chatice folclórica, leve e tolerável.

Agora, chato crônico, que se acha intocável e tem a cara de pau de intrometer-se na vida alheia, é lastimável. É ridículo e contraditório o chato que, incapaz sequer de dizer “bom dia”, “com licença”, “por favor” aos próprios vizinhos, faz-lhes caras feias, dá-lhes lição de moral e acha que ensina-lhes como devem viver, por intermédio de bilhetes escritos com português sofrível e anônimos. Em tempo: sabe-se quem é o autor, pois, mais de uma vez foi visto se esgueirando pelas paredes e muros a enfiar bilhetes sob as portas e caixas de correio dos vizinhos.

Instado a dar uma ideia, sugeri e escrevi o que segue e foi colocado na caixa de correio do sujeito, sem me livrar da dúvida: seria erro ou acerto? Essas peculiaridades de seres humanos não têm solução, unanimidade e conclusão, mas, pode-se agir em prol de gradativas mudanças e melhoras de entendimento e comportamento: do remetente dos bilhetes, do remetente desta, dos demais envolvidos e de quem se flagrar leitor e interessado em melhorar a si mesmo…

Excelentíssimo senhor perfeito:

Sentimo-nos honrados por habitar entre nós tão absolutamente maravilhosa pessoa. Ao mesmo tempo, envergonhamo-nos da nossa própria mediocridade: perdoe por lhe sermos tão incômodos com a nossa simples existência. Quis o destino não fôssemos bafejados pela sorte que premiou sua esposa e filhos, seguramente, felicíssimos por partilharem da sua intimidade, sapiência e infalibilidade; em que pese serem de nível inferior, supomos, pois, não nos tratam como o senhor nos trata.

Outrossim, convictos da sua inteligência ímpar e capacidade de apontar com perfeição os erros das outras pessoas que, ao contrário do senhor, estão repletos de fraquezas, carências e defeitos, bem como de dizer-lhes precisamente como devem viver suas próprias vidas, particular e profissionalmente, pedimos, humildemente, resolva alguns problemas relacionados à nossa vizinhança, a saber: bandidos que nos invadem as residências na calada da noite, furtam ou roubam nossos veículos, bicicletas, carteiras e bolsas à luz do dia; traficantes e viciados; gangues que se violam reciprocamente; estupradores e assassinos, inclusive, menores, presos ou não, tidos por irrecuperáveis; alunos que colam e não estudam com esforço e porção de escolas precárias para ensinar ou que mais fariam com maiores recursos, tal como costuma ser nos postos de saúde e hospitais; o desperdício de água, vandalismo e lixo por todo canto; os donos de igrejas mercantilistas e alienantes a tomar o dinheiro e o bom senso alheio; e, afora outros problemas, a corrupção embutida no pensar e agir de muita gente e em todos os setores da sociedade, não apenas entre porção dentre os políticos, seus colaboradores, parceiros e parentes, que se valem do que é público para benefício próprio e de seus feudos.

Inicialmente, pensamos que os bilhetes sem seu nome fossem demonstração cabal de covardia. Depois, depreendemos que seu anonimato deve ser exemplo de humildade e abnegação a nos dizer: importa que as pessoas aprendam, mesmo que não saibam quem é seu mentor perfeito que a ninguém incomoda.

E o fato de ter sido facilmente notado a se esgueirar pelos cantos nas madrugadas, o que nos propiciou frouxos de riso ante tão patética cena, pelo que neste momento imploramos suas desculpas, deve ter sido uma artimanha genial: só para entendermos o quão feio e patético é um ser humano agir como um rato.

Convictos da sua sensibilidade ante nosso apelo, certos da facilidade com a qual consertará as pessoas e os problemas aos quais aludimos, antecipadamente comemoramos e vislumbramos uma vizinhança, senão perfeita como o senhor, ao menos, civilizada e humana.

Explicitado que finalmente identificamos quem é o ilustre remetente dos bilhetes impregnados de lições de vida, caso queira dispensá-los e tratar direta e verbalmente conosco, prometemos esforçarmos para não enfadá-lo e irritá-lo tanto. Confiamos que, sendo incapazes de interagir consigo a seu modo, seja o senhor gentilíssimo em interagir conosco a nosso modo falível e limitado: acertar mais do que errar, ajudar mais do que atrapalhar, escutar mais do que falar, dialogar mais do que discutir, entender mais do que julgar, desculpar mais do que condenar, trabalhar mais do que fazer nada, agir mais do que omitir, sinceros mais do que mentirosos; solidários mais do que egoístas, respeitando as diferenças e os diferentes.

Atenciosamente,

Os seus vizinhos”

José Carlos de Oliveira

Publicado originalmente em 1 de dezembro de 2012

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